Numa montanha, verde como tudo era verde na Galileia do tempo de Jesus, com os homens colhendo espigas e as mulheres, a uva, ao longe, Jesus se sentou no meio dos doze, no meio do povo, e pronunciou as Bem-aventuranças. Bem-aventurados todos aqueles que o ouviram naquele dia! Bem-aventurados todos os que não o ouviram, mas ouvem-no ainda hoje!
Naquele dia, ele disse que seríamos o sal da Terra. O sal é o que dá gosto, o que purifica, conserva, renova, cura e mantém. Tudo junto, no mesmo elemento e na mesma figura do sal. Acolher o chamado de Deus é ser sal da Terra. No dia em que você nasceu, foi pra isso que foi chamado, foi esse o primeiro chamado da sua vida nem bem começada. Antigamente, no rito do Batismo, o padre colocava uma pitada de sal na boca da criança. Era para ela experimentar, desde aquele dia, o que havia sido chamada a ser. Se as coisas mudaram, é hora de refazer o rumo.
Lembro-me de ter visto, certa vez, de onde estava, uma senhora idosa, à distância. Há horas ela estava lá. Saí e voltei, e ela continuou lá, sentada na varanda, no mesmo lugar, sem se dirigir a nada, apenas lá, onde a colocaram para que ficasse e, decerto, não incomodasse ninguém.
Não vi ninguém se dirigir a ela. Ninguém foi lhe perguntar se queria ou precisava de algo. Talvez ninguém tenha se dado conta dela ter ficado lá, perdida no vazio. Por sua idade avançada e pela sua incapacitante dependência, talvez, ela não fosse mais ninguém. Como e por que alguém iria se incomodar com quem não é ninguém?
Esse parece ser o retrato de uma época. É o retrato de uma vida perdida. Não parece ser esse também o retrato da nossa época?
Enquanto retrato, esse é também um paradoxo. Nunca época alguma esteve tão atenta ao valor pessoal de cada indivíduo. Nunca se salientou tanto o “seja você mesmo”. Nunca fomos tão sujeitos, como agora somos. Nunca nos levaram tanto em conta como hoje, quando são interpretados cada minúsculo ato e menor aspiração que temos. As manifestações populares legítimas mostraram isso. Ao mesmo tempo, nunca valemos tão pouco, tão baixo, como o preço de um tênis que o assaltante rouba, enquanto expolia a vítima, também da carteira, também da vida.
Cadê o sal? Com quê salgaremos? Fomos chamados a ser sal da Terra. Será que ele perdeu o sabor? Se perder o sabor “não serve para mais nada, apenas para ser jogado fora e pisado pelos homens” (Mateus 5, 13). O retrato-paradoxo de nossa época cabe bem na moldura do descartável e do funcional. Antes que nos tornemos descartáveis por termos deixado de ser funcionais, antes de cairmos nas patologias do vazio, quem sabe voltemos às fontes para lembrar nossa vocação primeira: a de ser sal da Terra.
Dom José Francisco Rezende Dias, Arcebispo de Niterói (RJ)
fonte: CNBB
